A propaganda e o uso racional dos medicamentos |
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Preocupado com o hiperconsumo
de muitos medicamentos no Brasil, o professor
adjunto José Augusto Cabral de Barros
do Departamento de Medicina Social da Universidade
Federal de Pernambuco e membro do Conselho
Consultivo da Acción Internacional
para la Salud (AIS) e do Conselho Diretor
da SOBRAVIME, aponta a propaganda tendenciosa
como parte do problema.
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É autor do livro Políticas
farmacêuticas: a serviço dos interesses
da saúde?, lançado em 2005,
durante o 4º RIOPHARMA, onde apresenta uma
análise crítica sobre o fenômeno
da medicalização.Segundo ele, a propaganda
dos medicamentos, nas suas mais variadas feições,
tem, crescentemente, contribuído para reforçar
a valoração, para além do razoável
ou do aceitável, cientificamente, daquilo
que se pode desfrutar, objetivamente, ao consumir
esses produtos.
Nesta entrevista ao IVFRJ On Line,
o professor José Augusto apresenta os principais
pontos de sua palestra A propaganda e o
uso racional dos medicamentos, que se realiza
no dia 30 de maio, às 17 horas, no auditório
Hélio Fraga, Bloco K, 2º andar, no Centro
de Ciências da Saúde, da UFRJ, dentro
do I Ciclo de Conferências do Instituto Virtual
de Fármacos do Rio de Janeiro.
Qual a relação entre
a propaganda e o uso racional dos medicamentos?
JACB - De forma crescente e intensiva,
na sociedade moderna de consumo, os medicamentos,
ao lado do seu potencial de aliviar sintomas e curar
doenças, foram assumindo, no contexto da
lógica capitalista, funções
de caráter muito mais simbólico ou
mesmo “mágico”, para o que contribuem,
de maneira sinérgica, o modelo biomédico
dominante (reduzindo o processo saúde doença
à sua dimensão biológica) e
a transformação em mercadorias de
todos os bens e serviços – também
os relacionados ao setor saúde – de
cujo consumo passou a depender o “bem-estar”,
a “saúde” e a “felicidade”.
E como funciona a publicidade farmacêutica?
JACB - Já se dispõem de evidências
inquestionáveis quanto ao caráter
tendencioso do material publicitário veiculado
para profissionais de saúde, elaborados com
propósitos exclusivos de ampliar a prescrição
e demanda, para o que são utilizadas as mais
variadas e sofisticadas estratégias. É
sumamente grave, a constatação, na
grande maioria dos países, da dependência
dos profissionais que lidam com medicamentos, para
sua atualização em farmacoterapia,
de informações oriundas dos produtores.
Em termos de investimento, quanto seria?
JACB - Os produtores investem o dobro ou
o triplo em publicidade, em relação
ao investimento orientado à Pesquisa e Desenvolvimento
de novos fármacos (cerca de 20% do faturamento
global que em 2005, alcançou mais de US$
600 bilhões em todo o mundo). Sabe-se, ademais
que, apesar dos dispêndios significativos
com a propaganda direta ao consumidor, os gastos
publicitários se dirigem, fundamentalmente,
aos responsáveis pela receita.
Como funciona isso na prática?
JACB - Os exemplos de novas artimanhas
junto ao grande público, vêm se multiplicando.
Como os casos recentes, ocorridos nos Estados Unidos,
dos Value Cards For Viagra (com os quais
pode-se ganhar a sétima caixa, após
a compra de seis unidades) ou da iniciativa dos
produtores do Restylane® (Acido hialurônico),
indicado para prevenção de rugas e
que se proclama como o primeiro e único programa
de fidelidade para um medicamento cosmético
ao oferecer bônus de US$100 para SPAS ou cupons
para compras no valor de US$25. No país mencionado,
no entanto – aliás, um dos dois únicos,
sendo o outro a Nova Zelândia, países
desenvolvidos nos quais está permitida a
publicidade na mídia, de produtos para os
quais se requer uma prescrição médica
– a criatividade dos fabricantes não
tem limites: O Centro de Mídia e Democracia,
de Madison, Wiscosin, acaba de publicar resultados
de pesquisa, reproduzida em número recente
do British Medical Journal, renomada revista
médica do Reino Unido, concluindo que canais
de TV vêm utilizando reportagens elaboradas
pela indústria farmacêutica como se
fossem provenientes dos departamentos de jornalismo
das próprias emissoras. Durante 10 meses
se constatou a exibição de 36 vídeo-releases
em programas de telejornalismo de 77 emissoras,
sem que tivesse sido evidenciada a origem da informação
veiculada, alertando os autores do estudo para o
fato de que os mencionados vídeos são
parte de campanhas de relações públicas
para vender produtos ou melhorar a imagem das corporações
frente ao público. Para saber mais basta
acessar o site www.prwat.ch.org/fakenews/execsummary.
O senhor realizou uma pesquisa, em
Recife, sobre a utilização de esteróides.
Quais os resultados obtidos?
JACB - O impacto da publicidade se reflete
claramente nas vendas e no comportamento dos usuários.
Pesquisa por nós realizada entrevistando
200 freqüentadores de academias de ginástica
em Recife e 20 dos instrutores que nelas atuam,
constatou a utilização de esteróides
anabolizantes por 34% dos homens e 21% das mulheres
entrevistadas, dado extremamente preocupante se
consideramos os efeitos adversos desses hormônios
e a distorção representada pela opção
farmacológica para ganhar um “corpo
sarado”, também por parte de mulheres.
Outra opção dessa natureza está
igualmente evidente nos dados divulgados faz pouco,
dando conta do hiperconsumo no Brasil de derivados
anfetamínicos como inibidores do apetite.
Relatório divulgado pelo escritório
das Nações Unidas responsável
pela fiscalização e controle mundial
das drogas (INCB, na sigla em inglês) mostra
que o Brasil está na companhia de países
como Austrália, Cingapura e Coréia,
onde o consumo das anfetaminas vem crescendo, contrariamente
à tendência mundial de retração,
segundo a Folha de São Paulo, de dois de
março de 2006.
De um outro derivado anfetamínico (metilfenidato,
usado em portadores do TDAH (transtorno de deficit
da atenção e hiperatividade e comercializado
sob o nome de Ritalina®) foram vendidas, em
2000, 71 mil caixas. Em 2004 esse número
subiu para 739 mil (incremento de 940%). Somos,
necessariamente, levados a pensar que estamos diante
de mais um candente exemplo de medicalização
de um “problema”, em muitos casos originado
na pouca disposição dos pais e/ou
educadores de imporem limites aos educandos, tarefa
que termina por ser substituída,como em tantas
outras situações, pela estratégia
medicamentosa.
O que mais lhe preocupa nessa situação?
JACB - É deveras perigosa a continuidade
de práticas que mantenham, sob o controle
e patrocínio estritos da indústria
farmacêutica a realização de
congressos e eventos ditos “científicos”,
a publicação de revistas médicas,
a distribuição de brindes os mais
diversos. De forma que nos parece até certo
ponto ingênua a proposta da ANVISA justifica
a chamada “amostra grátis”, versão
especial do produto original, com a finalidade de
“dar conhecimento de sua natureza, espécie
e qualidade”. O conhecimento objetivo de um
produto e dos informes farmacológicos e famacotécnicos
sobre o mesmo, deve ser a resultante da análise
dos dados relacionados, por exemplo, aos ensaios
clínicos controlados ao acaso e que deveriam
chegar aos profissionais por meio de boletins terapêuticos
independentes, informações periódicas
do órgão regulador e reuniões
científicas independentes do respaldo financeiro
da indústria farmacêutica.
Enfim, a propaganda dos medicamentos, nas suas mais
variadas feições, tem, crescentemente,
contribuído para reforçar a valoração,
para além do razoável ou do aceitável,
cientificamente, daquilo que se pode desfrutar,
objetivamente, ao consumir esses produtos.
E qual seria a solução
para esta questão?
JACB - Nas circunstâncias atuais,
e considerando os diferentes agentes envolvidos
na cadeia de utilização dos medicamentos,
ademais das medidas de controle voltadas para os
produtores, caberia institucionalizar alternativas
de informação/atualização
independentes na sua origem, conteúdo e formas
de veiculação, destinadas aos consumidores
e aos prescritores e dispensadores. No que tange,
propriamente à regulação da
publicidade de medicamentos, injustificável
per se, diante da impossibilidade objetiva, a curto
ou médio prazos de proibi-la totalmente,
cabe esperar da reformulação da Resolução
102 da Diretoria Colegiada da ANVISA, em fase de
reavaliação, passos mais efetivos
do que aqueles vislumbrados na proposta posta para
discussão pela Agência.
Veja o livro: Políticas
farmacêuticas: a serviço dos interesses
da saúde?