François
Noël
Professor Titular Chefe do Departamento de Farmacologia
Básica e Clínica
Numa época em que a legislação brasileira esta
restringindo o uso de combinações em dose fixa (combinações
de princípios ativos diferentes em uma mesma forma
farmacêutica)1, alguns das quais
estariam sem fundamento racional, é importante ressaltar
que existem combinações com eficácia comprovada,
como no caso de haver sinergismo entre dois (ou
mais) fármacos. O exemplo mais conhecido do grande
público é certamente o combate à AIDS2,
baseado no uso de coquetel de vários fármacos, alguns
dos quais apresentados sob forma de combinação,
exemplificado pela recente determinação do FDA em
ajudar na aprovação de um medicamento sob forma
de comprimido contendo a combinação, em dose fixa,
de três fármacos anti-AIDS (lamivudina, zidovudina
e nevirapina)3. Portanto, nós pareceu
importante rever algumas noções sobre aditividade
e sinergismo, temas pouco abordados em livros textos
de Farmacologia, razão pela qual existe certa imprecisão
no uso destes termos, mesmo por especialistas, como
demonstrado pelo título desafiador do artigo "O
que é sinergismo ?" publicado numa das mais
tradicionais revistas de revisão em farmacologia4.
Falaremos de sinergismo quando o efeito da
combinação (ou associação) de dois fármacos é superior
aquele esperado baseado na simples aditividade.
O primeiro passo é de definir precisamente o que
entendemos por aditividade (interação nula), o que
poderia parecer uma questão simples de resolver
mas que, na prática, se torna um pouco complicado
ainda mais devido à falta de consenso. Para simplificar,
podemos considerar que existem duas alternativas:
aditividade de efeitos e aditividade de doses5,6.
A aditividade de efeitos de dois fármacos
usados em combinação significa que o efeito resultante
é a soma dos efeitos individuais. No caso da aditividade
de doses (aditividade de Loewe), o efeito
da combinação é o efeito previsto baseado nas potências
(e doses) dos dois fármacos: neste caso, considera-se
que existe aditividade quando um fármaco (o menos
potente) atua como se fosse uma simples forma diluída
do outro.
Uma vez entendido o(s) significado(s) de tal fenômeno,
podemos refletir sobre a natureza dos mecanismos
envolvidos no sinergismo entre dois fármacos. Na
realidade, a interação pode ocorrer tanto na etapa
farmacocinética (geralmente durante o processo de
metabolização) quanto na etapa farmacodinâmica (i.e.
efeitos dos fármacos no órgão alvo)6.
No primeiro caso, o exemplo mais freqüente é de
inibição enzimática, quando um fármaco inibe o metabolismo
do outro, como no caso da associação entre ritonavir
e saquinavir. Neste caso, o ritonavir inibe o intenso
metabolismo hepático do saquinavir, via a enzima
CYP3A4, aumentando assim a sua concentração plasmática
e o seu tempo de meia-vida7. No segundo
caso, podemos ter um efeito final resultante da
ação de dois fármacos em alvos moleculares distintos,
como no caso do intenso sinergismo observado para
os efeitos antinociceptivos da fentolamina (um bloqueador
alfa-adrenérgico) e do paracetamol5.
Finalmente, resta a saber como podemos avaliar,
na prática, o tipo de interação que existe quando
se usa uma combinação de dois (ou mais) fármacos?
Geralmente, abre-se mão de modelos empíricos que
necessitam apenas de informação sobre as doses (ou
concentrações) usadas e os efeitos observados dos
dois fármacos além de uma relação quantitativa entre
dose e resposta, selecionada empiricamente6.
Uma vez definido o critério a ser usado para definir
uma interação nula, podemos concluir que efeitos
maiores do que esperados indicam sinergismo enquanto
que efeitos menores indicam antagonismo5,6.
Caso se opta pelo critério de aditividade de doses,
podemos usar a clássica análise isobolográfica (um
isobologramo é um gráfico bidimensional com as doses
dos fármacos A e B nas coordenadas, em que diferentes
linhas, os isobolos, conectam as diferentes combinações
de doses que produzem a mesma intensidade de efeito)5.6.
Uma outra opção, mais recente, é de construir uma
curva aditiva combinada ("additive composite
curve")5 ou seja uma curva dose (ou concentração)-efeito
para uma combinação fixa dos dois fármacos (por
exemplo 10% de A associado à 90% de B). A situação
é um pouco mais complexa ainda devido à necessidade
da haver algum teste estatístico além da avaliação
gráfica qualitativa5.
Para terminar, voltaremos à clínica lembrando que,
fora o tratamento da AIDS, o sinergismo é também
a base de bem sucedidas e tradicionais associações
medicamentosas no tratamento de tumores e de infecções,
tanto bacterianas como parasitárias. Neste último
caso, merece destaque a associação recém-proposta
entre artemeter e praziquantel para o tratamento
da esquistossomose em áreas de alta endemicidade
(alto grau de re-infecção)8. A base racional
desta combinação reside no fato do artemeter ser
mais ativo sobre os vermes imaturos ao contrário
do praziquantel que é pouco ativo sobre esta forma
juvenil do parasita mas mais ativo sobre a forma
adulta.
Referências:
1. ANVISA, Resolução - RDC Nº 210, de 2 de Setembro
de 2004
2. Sühnel, J. Evaluation of synergism or antagonism
for the combined action of antiviral agents. Antiviral
Res. 13: 23-39, 1990.
3. http://www.fda.gov/bbs/topics/NEWS/2006/NEW01406.html.
4 Berenbaum, M.C. "What is synergism ?" Pharmacol.
Rev. 41: 93-141, 1989.
5. Tallarida, RJ. Drug Synergism: Its Detection
and Applications. J. Pharmacol. Ther. 298:
865-872, 2001
6. Groten, JP., Feron, VJ. & Sühnel, J. Toxicology
of simple and complex mixtures. Trends Pharmacol.
Sci. 22: 316-322, 2001
7. Goodman & Gilman's The Pharmacological Basis
of Therapeutics, 11th ed. p. 1301, 2006.
8. http://www.who.int/tdr/publications/publications/pdf/pr17/schisto.pdf