Marketing de medicamentos estimula automedicação |
A propaganda dos medicamentos, veiculada de forma
enganosa e abusiva nos meios de comunicação, se
constitui em um dos principais incentivos à prática
da automedicação no país. A freqüente associação
da saúde, com o uso de medicamentos, promovida pelo
tripé formado pela indústria farmacêutica, agências
de publicidade e empresas de comunicação, estimulam
o imaginário curativo da população brasileira que
acredita na ciência e tecnologia manifestada através
de pílulas.
"A crença de que uma pílula seja capaz de eliminar
ou diminuir, no mínimo, amenizar quaisquer problemas
é fator determinante para a decisão de adquirir
e consumir medicamentos", discorre a pesquisadora
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Marilene Cabral do Nascimento, em seu livro "Medicamentos:
ameaça ou apoio à saúde". Segundo a autora, a propaganda
intensa nos meios de comunicação, sem os alertas
sobre os riscos decorrentes do uso dos medicamentos
indicados, representa não apenas um contínuo processo
de deseducação da população, mas também uma agressão
à saúde pública.
José Augusto Cabral de Barros, professor do Departamento
de Saúde Social da Universidade Federal de Pernambuco,
em sua publicação "Propaganda de Medicamentos:
atentado à saúde?", ressalta que a produção
de bens e serviços, no contexto da lógica do mercado
foi, em forma crescente, erigindo o acesso ao consumo
como estratégia básica para o desfrute de níveis
satisfatórios de bem-estar. "Tanto é assim que
bons níveis de saúde passaram a ser vistos, igualmente,
como resultante do acesso a tecnologias diagnóstico-terapêuticas.
A eficácia e a efetividade destas últimas têm sido
cada vez mais associadas ao grau de sofisticação
técnica empregada, tendo sido o mais recente exame
laboratorial ou o fármaco de mais recente lançamento
identificado como o melhor e o mais apto a 'brindar
solução para os meus problemas' ", completa
o professor Cabral.
A propaganda pode influenciar tanto no autoconsumo
quanto na prescrição médica. Muitos profissionais
de saúde acabam receitando novidades, influenciados
pela propaganda dos laboratórios, não dando prioridade
para receitar os medicamentos essenciais definidos
pela Relação Nacional de Medicamentos e acompanhados
pelos comitês de farmácia e terapêutica.
Grande parte das matérias veiculadas pelos meios
de comunicação de massa trazem as novas terapias
medicamentosas como verdadeiros milagres na área
da saúde, apresentam inúmeras vantagens, porém poucos
textos informam sobre as contra-indicações, reações
adversas e restrições de uso dos medicamentos anunciados.
Informações essenciais que poderiam evitar a automedicação
e o uso indiscriminado dos medicamentos são negligenciadas
ao público por serem considerados, do ponto de vista
publicitário, como uma contrapropaganda do marketing
medicamentoso.
Regulação da propaganda de medicamentos
A Resolução da Diretoria Colegiada (RDC N°102/00)
da Anvisa e a lei 6.360/76 proíbem a propaganda
de medicamentos de venda sob prescrição médica,
os de tarja preta e vermelha, para o público. A
divulgação desses medicamentos só pode ser feita
se destinada exclusivamente a médicos, dentistas,
veterinários e farmacêuticos. Para a população em
geral, permite-se apenas a publicidade de medicamentos
sem exigência de receita. As classes terapêuticas
com maior incidência de propaganda e, conseqüentemente,
mais sujeitas à prática da automedicação são os
antibióticos (26%) e os antiinflamatórios (27%).
As propagandas devem se submeter às disposições
legais que estabelecem critérios para a divulgação,
promoção ou comercialização de medicamentos de produção
nacional ou importado. É proibido estimular o uso
indiscriminado do medicamento, assim como o uso
de linguagem direta ou indireta relacionando o uso
do fármaco ao desempenho físico, intelectual, emocional,
sexual ou a beleza de uma pessoa, exceto quando
forem propriedades aprovadas pela Agência Nacional
de Vigilância Sanitária.
Os problemas mais freqüentes encontrados nas peças
publicitárias são:
|
Não informar as contra-indicações; |
|
Não informar reações adversas
e interações medicamentosas; |
|
Sugerir a ausência de efeitos
colaterais; |
|
Anunciar produtos sem registro; |
|
Realizar comparações sem a comprovação
de estudos clínicos. |
Projeto de Monitoração da Propaganda
Resultado de um convênio da Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (ANVISA) com 19 universidades de todo o
país, o projeto de Monitoração da Propaganda acompanha
e faz a análise, do ponto de vista legal e farmacológico,
da propaganda e publicidade de medicamentos em diferentes
veículos de comunicação. Além de monitorar anúncios,
as instituições conveniadas também realizam ações
de educação regional com escolas do ensino básico,
universitário e junto à comunidade.
De acordo com dados do projeto, cerca de 90% dos comerciais
de medicamentos apresentam alguma irregularidade.
A situação é mais alarmante na publicidade direcionada
a médicos e farmacêuticos. Quinze por cento de 1,5
mil propagandas de medicamentos de venda sob prescrição
analisadas pela ANVISA não apresentavam cuidados e
advertências, 14% não alertavam sobre as contra-indicações
e mais 10% continham informações sem comprovação de
estudos científicos.
O desenvolvimento do projeto é importante para a consolidação
do Sistema Nacional de Informações e Vigilância Sanitária
no qual se insere a fiscalização permanente da publicidade
de medicamentos. Contribuir para o aperfeiçoamento
das medidas regulatórias e para a implementação de
políticas de educação e conscientização que estimulem
uma postura crítica da população em relação aos medicamentos
são objetivos inerentes ao projeto. O usuário bem
orientado está menos exposto aos riscos pelo uso indevido
com o medicamento.
Fragilidade da legislação atual contribui para
automedicação
O frágil modelo regulatório da propaganda de medicamentos
no Brasil é analisado pelo jornalista Álvaro Nascimento
no livro "
Ao persistirem os sintomas o medico deverá
ser consultado. Isto é regulação?". Para o autor,
a propaganda feita hoje entra em clara contradição
com a atual Política Nacional de Medicamentos, segundo
a qual o uso de produtos farmacêuticos deve ser dar
de forma racional, ética e correta, preconizando o
"
controle da propaganda dos medicamentos de venda
livre".
Uma de suas maiores críticas em relação à legislação
vigente (RDC N°102/00) concentra-se na obrigatoriedade
de, ao final de cada propaganda, estampar a frase:
"
AO PERSISTIREM OS SINTOMAS, O MÉDICO DEVERÁ SER
CONSULTADO". Para Álvaro Nascimento, a mensagem,
na verdade, deseduca e estimula à automedicação e
ao consumo irracional, incorreto e inconsciente, porque
induz a somente procurar um médico após ter tomado
primeiro o medicamento. Na sua opinião, a frase correta
deveria ser "
ANTES DE CONSUMIR QUALQUER MEDICAMENTO,
CONSULTAR UM MÉDICO".
Devido ao histórico descumprimento das seguidas legislações
por parte da indústria farmacêutica e das agências
de publicidade, Álvaro Nascimento defende a proibição
total da propaganda de medicamentos como um instrumento
de proteção da sociedade contra abusos do poder econômico.
ANVISA anuncia revisão das normas de regulação
A automedicação é um hábito que preocupa autoridades
sanitárias não apenas do Brasil, mas do mundo inteiro.
Uma das determinações da Organização Mundial da Saúde
(OMS) para o triênio de 2004-2007 é que os países
membros se comprometam a tomar medidas para mudar
o atual panorama do uso inadequado de medicamentos.
Em uma parceria inédita no país, prescritores, dispensadores
e agentes de monitoração e fiscalização reuniram-se
para debater a influência da propaganda e o uso racional
de medicamentos em diversos seminários realizados
nas cinco regiões brasileiras. Nos encontros foram
apresentadas críticas e sugestões para ajudar na formulação
de um plano nacional regulatório para a propaganda
de medicamentos. A ANVISA está realizando uma revisão
das normas que regulam esse tipo de anúncio no Brasil
e, nos próximos meses, será divulgada uma proposta
para atualizar as regras do setor.